Poucas vias de aproximação ao Italia 90, o mundial
que inaugurou a minha condição de adepto de futebol, me restam após dois
textos, um sobre Goycochea, escrito em Dezembro de 2020, e outro sobre Andreas Brehme, que escrevi no dia da sua morte, a 20 de Fevereiro do ano passado.
Há muito que este texto pedia para ser escrito, faltando
somente uma desculpa, um gatilho capaz de desbloquear o saudosismo que aquele
evento ainda hoje provoca em mim de cada vez que as imagens de um qualquer
resumo daquele Verão surgem na TV ou no telemóvel. E foi à conta de ver tantos
vídeos evocativos acompanhados pela canção oficial do torneio que me rendi e
admiti estar ali a forma de voltar a erguer as ruínas dispersas na memória cada
vez mais difusa.
Un’Estate Italiana é uma canção da qual não guardo qualquer memória. Da
mascote sim, a inesquecível bola de futebol vestida de bandeiras
paralelepipédicas do país anfitrião, mas da música nada. E contudo, hoje quase
que choro sempre que a oiço; então se vem acompanhada de imagens que se me
sobrepõem às memórias que na minha reconstrução começavam a divergir, é certo
que engulo em seco e fico ali, a ouvir, a corrigir as lembranças e a jurar que
aquela canção entrou na minha vida aos 9 anos.
Não é novidade que há experiências que evocam outras, numa associação livre e, por mais estudada que esteja pela Psicologia, nunca perde o sua chama de mistério. Pode ser uma pessoa, um edifício, um lugar, um filme, palavra ou canção. Não terá sido naquele tempo, mas nos anos subsequentes, que Un’Estate Italiana foi unindo as peças do puzzle do meu mundial de Itália. Não necessariamente do Italia 90 comum a todos aqueles que o viveram, mas aquele que eu vi, ou melhor, aquele que escolhi guardar com tudo o que então senti e que representou para mim.
Poderia desenrolar a lista de jogadores e curiosidades
desse torneio, mas este texto não é só sobre o futebol jogado dentro de campo:
é sobre o poder de uma canção escrita por um DJ que já então havia vencido três
óscares (!) e que fica para mim cunhado naquela década de 80. O Expresso da
Meia-Noite, Flashdance e Top Gun são filmes icónicos e a
música forma, sobretudo nos dois últimos, um factor extra que nos ajuda a
localizar uma época e o sentir da mesma.
Giorgio Moroder escreveu a canção do torneio, que viria a
ser imortalizada por Gianna Nannini e Edoardo Bennato. Não sou amante nem
conhecedor de música, e aquela de que gosto assenta maioritariamente nas
décadas de 70, 60 e 50 (por esta ordem). A batida dos eighties diz-me
pouco, e no entanto, esta balada de rock ocupa um lugar na escala musical
interna muito pouco coerente com os meus gostos musicais. Porque não é da
canção de per si que gosto, mas do que ela me foi oferecendo ao longo
das décadas. Hoje, acredito gostar da canção pela sua musicalidade, mas nunca o
saberei com total certeza, pois é-me impossível desligá-la dessa experiência
iniciática que foi o Itália 90.
Ouvir esta canção acompanhado e não partilhar um gosto
comum quase me tolhe a tolerância e acicata o umbiguismo: Como é possível
não gostar deste rimo, desta pronúncia, tu que também viveste aquele Verão?!
É aqui que entra o esforço para descolar e assumir que todos vemos tudo de
forma diferente. Aqui e ali, encontrarei alguém que partilhe esta associação
apaixonada entre Un’Estate Italiana e o Italia 90, ou entre a
música e uma época, um Verão, a infância, a adolescência ou o que quer que
seja.
Os mecanismos cerebrais que accionam a memória são, em
grande medida, os mesmo que estão na base da criatividade. Talvez isso ajude a
explicar a minha jura hoje em, sabendo que não aconteceu, esta canção ser a
minha canção do Verão de 1990. O passado reconstruído, com os perigos
sobejamente conhecidos que daí advêem, ganha outra cor, outra luz reflectida no
presente, o que era banal transforma-se em saudade, nostalgia carinho ou (por
vezes) trauma, e neste processo, inventamos pequenas peças que colocamos nos
espaços em branco para dar sentido ao que estava incompleto.
Dificilmente o passado é fechado, estando continuamente sujeito a reinterpretações, lembranças inesperadas de fragmentos recalcados ou novas ligações que nos ajudam a dar mais umas pinceladas numa forma que, cada vez mais próxima do modelo final, pode sempre estar sujeita a uma nova versão. Un’Estate Italiana traz-me a melhor versão desse mundial onde, para citar os dois protagonistas dos textos anteriores, me fiz fã de Sergio Goycochea e de Andreas Brehme. Que bom é ganhar uma canção deste jeito tão completo.
Guia, 8 de Junho de
2025
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